Quase 90% da perda de florestas no mundo é causada pela expansão agrícola decorrente do aumento da demanda por commodities como café, cacau, carne bovina, soja, óleo de palma e madeira. Por causa disso, cada vez mais governos, empresas e ONGs direcionam suas ações para reduzir o desmatamento causado pelo setor. Diversos mercados ao redor do mundo têm desenvolvido políticas que proíbem a venda ou importação de produtos cultivados em áreas desmatadas, e centenas de empresas de bens de consumo já anunciaram metas pelo desmatamento zero.

Algumas dessas regulações ainda estão nas etapas iniciais de desenvolvimento ou implementação, de modo que é preciso aguardar para ver seu potencial na prática, mas outras medidas já existentes, por enquanto, não conseguiram conter o desmatamento. Um dos principais motivos para isso é a falta de transparência e rastreabilidade nas cadeias produtivas.

Por que é tão desafiador manter a transparência e a rastreabilidade das cadeias produtivas?

Para que as empresas saibam que contribuem para o desmatamento, elas precisam poder verificar informações sobre a origem de uma determinada commodity ou produto. E essa não é uma tarefa simples.

Considere o exemplo de uma barra de chocolate. O principal ingrediente é o cacau, uma matéria-prima que pode mudar de mãos e cruzar fronteiras várias vezes antes de chegar ao consumidor. Embora a maior parte do cacau seja produzida por pequenos produtores na África Ocidental, o ingrediente é exportado principalmente para a Europa, onde é processado e transformado em produtos de chocolate distribuídos para revendedores em todo o mundo. Conectar centenas ou mesmo milhares de pontos ao longo de uma cadeia produtiva complexa e de escala global como essa é um desafio enorme. Uma multinacional de bens de consumo como a Unilever, por exemplo, adquire suas matérias-primas a partir de pelo menos 52 mil fornecedores diferentes.

gráfico mostra uma cadeia produtiva genérica

Mesmo quando as informações existem, elas podem não estar disponíveis para todos que detêm a responsabilidade de erradicar o desmatamento. Empresas nas etapas finais da cadeia produtiva e investidores precisam ter acesso a essas informações para tomar decisões embasadas a respeito de seus fornecedores ou das empresas em que vão investir. Já os governos e a sociedade civil precisam que as cadeias produtivas sejam transparentes para poder monitorar as empresas que estão em conformidade com as políticas existentes e cumprindo suas promessas.

Novas ferramentas têm ajudado as empresas a rastrear suas cadeias produtivas, mas isso ainda não é o suficiente

A tecnologia está começando a lançar luz sobre cadeias produtivas obscuras e a mudar a forma como as empresas monitoram e administram essas cadeias. Plataformas de dados como Global Forest Watch (GFW) e GFW Pro, por exemplo, permitem que as organizações monitorem a localização dos fornecedores e identifiquem se há desmatamento na área.

Outro exemplo é a Trase, desenvolvida em conjunto pelo Instituto Ambiental de Estocolmo e pela Global Canopy. A ferramenta mapeia em escala internacional o comércio e o financiamento das principais commodities associadas ao desmatamento de florestas tropicais, permitindo que as empresas identifiquem os riscos para a sustentabilidade em suas cadeias de produção.

Empresas e governos também têm atuado de forma individual. A Nestlé, por exemplo, reporta que a parceria com a Starling, ferramenta de monitoramento via satélite, permitiu rastrear 97% do fornecimento de óleo de palma, até as etapas iniciais de moagem. Outro exemplo: o governo de Gana trabalha no desenvolvimento de um sistema de monitoramento do cacau que permitirá rastrear as vagens de cacau até suas fazendas de origem.

Esses são apenas alguns dos muitos exemplos apresentados em um relatório recente do WRI, que mostra que promover a transparência e a rastreabilidade nas cadeias produtivas é um desafio complexo, mas possível. Em muitos casos, a alteração de exigências regulatórias e voluntárias trouxe inovações e novas soluções.

agricultora fazendo secagem de cacau
Um pequeno produtor coloca grãos de cacau para secar. A maior parte do cacau produzido no mundo vem da África, de onde os grãos cruzam fronteiras e mudam de mãos diversas vezes antes de serem processados para se tornar chocolate (foto: Media Lens King/iStock)

O que é preciso para tornar as cadeias produtivas mais transparentes?

O relatório destaca o que podemos aprender com esses projetos para ampliar os esforços já existentes e aumentar tanto o ritmo quanto o escopo de ação. Para que as empresas e outros atores possam rastrear de forma efetiva o desmatamento nas cadeias produtivas de todo o mercado, ferramentas e iniciativas de transparência precisam atender a quatro condições:

1) Alinhamento entre os atores envolvidos

Se projetos isolados forem estabelecidos com objetivos diferentes e conjuntos de dados forem gerados a partir de métricas e definições diferentes, os esforços para construir sistemas colaborativos ou utilizar os dados existentes fica difícil ou mesmo inviável. Portanto, é preciso haver alinhamento entre os atores envolvidos ao longo das cadeias produtivas, incluindo governos de países produtores e exportadores de commodities, empresas do setor privado e organizações da sociedade civil. Também é preciso haver colaboração para garantir que os dados possam ser compartilhados e utilizados em diferentes sistemas de rastreabilidade. Isso inclui o desenvolvimento de definições consistentes padronizadas, o uso dos mesmos formatos e exigências de divulgação de informações e a elaboração de estratégias de compartilhamento de dados embasadas em aspectos legais, comerciais e técnicos. Além disso, é necessária uma estrutura de regras mais clara para promover a transparência nos processos de coleta e divulgação desses dados.

Forest Data Partnership, um consórcio liderado pelo WRI com recursos do governo dos Estados Unidos, atua para solucionar esse desafio padronizando dados de diferentes fontes e usando aprendizado de máquina para fornecer aos atores ao longo das cadeias produtivas dados referenciais validados e de alta qualidade sobre uso da terra. De forma semelhante, a Digital Integration of Agricultural Supply Chains Alliance (DIASCA, na sigla em inglês, ou “Aliança pela Integração Digital de Cadeias Produtivas Agrícolas”) trabalha para promover a interoperabilidade entre sistemas de rastreamento de cadeias agrícolas globais. Para isso, a Aliança tem estabelecido boas práticas comuns, a fim de superar as atuais barreiras que dificultam a troca de dados.

2) Condições regulatórias favoráveis

Um ambiente regulatório favorável é fundamental para garantir que os dados estejam disponíveis e sejam compartilhados entre diferentes atores. Por exemplo, exigências de diligência prévia e normas obrigatórias de divulgação de informações estabelecidas pelos governos para empresas e instituições financeiras são ferramentas poderosas para aumentar os níveis de divulgação. Dessa forma, é possível intensificar a demanda por transparência e rastreabilidade, principalmente nos casos em que a divulgação ainda é voluntária. Esses mecanismos também ajudam a criar um cenário de concorrência mais equilibrado para as empresas que já divulgam seus dados e podem estar mais expostas ao escrutínio público do que aquelas que ainda não compartilham suas informações.

O Reino Unido, por exemplo, foi uma das grandes economias do mundo que tornou a divulgação de informações climáticas obrigatória para empresas listadas publicamente, usando os padrões da Força-Tarefa para Divulgações Financeiras relacionadas ao Clima (TCFD, na sigla em inglês). Embora tenha começado como um conjunto de recomendações para as empresas divulgarem seus riscos climáticos de forma voluntária, a TCFD se tornou parte da estrutura regulatória para divulgações obrigatórias em alguns países. Para empresas dos setores agrícola, florestal e de alimentos, a TCFD fornece métricas-chave relacionadas a mudanças de uso do solo e emissões de gases do efeito estufa, o que ajuda tanto as empresas quanto os bancos que as financiam a priorizar esses riscos.

3) Colaboração abrangente

À medida que proliferam novas ferramentas e iniciativas para promover transparência e rastreabilidade, aumenta o risco de duplicação de esforços. Por exemplo, muitas empresas podem estar mapeando as mesmas fazendas. A colaboração é essencial para evitar a perda de tempo e recursos, principalmente considerando que muitas empresas usam a mesma base de fornecedores.

Pode ser desafiador para as empresas encontrar maneiras de colaborar com suas concorrentes. A confidencialidade dos dados e outras preocupações comerciais com frequência geram uma resistência ao compartilhamento de informações. Mas é fundamental que as empresas atuem em conjunto com outras de seu setor para vencer um desafio comum a todas e coordenar os esforços para promover a rastreabilidade nas cadeias produtivas.

Por exemplo, atores do setor privado se uniram a parceiros da sociedade civil para criar a Universal Mill List, que mapeou cerca de duas mil usinas de processamento em 26 países usando identificadores padronizados para evitar a duplicação, um avanço significativo para promover a transparência na indústria do óleo de palma.

4) Inclusão dos pequenos produtores

Agir de forma coletiva também é fundamental para ampliar o apoio a atores mais vulneráveis, como os pequenos produtores, e avançar sua inclusão nas cadeias produtivas para que não fiquem para trás na transição para modos sustentáveis de produção de commodities. Por exemplo, se as empresas decidirem comprar apenas de fornecedores maiores, capazes de atender às exigências de rastreabilidade, isso deixaria passar uma oportunidade significativa de apoiar os pequenos produtores, responsáveis por um terço dos alimentos produzidos no mundo.

Um exemplo específico de como a ação coletiva pode apoiar os pequenos produtores é a Cocoa & Forests Initiative (CFI, na sigla em inglês), por meio da qual os governos de Gana e Costa do Marfim, junto a grandes empresas produtoras de cacau e chocolate, uniram forças para acabar com o desmatamento e restaurar florestas nos dois países. Juntas, as empresas envolvidas na iniciativa têm trabalhado para mapear as fazendas de pequenos produtores, responsáveis pela maior parte da produção de cacau na África Ocidental, para entender melhor de onde vem o cacau e identificar áreas de risco para o desmatamento. A iniciativa também apoia os produtores para que consigam produzir mais cacau em menos terra – por exemplo, criando unidades agroflorestais de cacau e distribuindo sementes de cacau. Essas práticas ajudam a aumentar a produtividade e o rendimento dos produtores ao diversificar os tipos de culturas, incluindo variedades como madeira, frutos e castanhas.

Para termos sucesso, precisamos de todos a bordo

Construir cadeias produtivas sustentáveis e livres de desmatamento exige uma colaboração sem precedentes por parte de todos os envolvidos. Cada setor tem seu papel para aumentar a rastreabilidade e a transparência das cadeias de produção.

  • Os governos podem criar um contexto regulatório e político favorável que incentive empresas e pequenos produtores a coletar e compartilhar informações. Nos países produtores de commodities, os governos podem implementar exigências legais, normas nacionais e sistemas de garantia. Na Malásia, por exemplo, o padrão Óleo de Palma Sustentável da Malásia obriga os produtores a estarem registrados para produzir, além da exigência de que sigam requisitos legais, forneçam informações de rastreabilidade para os compradores e atendam um mínimo de normas ambientais.

    Também é importante que os governos forneçam dados públicos oficiais sobre uso do solo, mudanças de uso do rolo, registros de propriedades rurais, titulação e compra e venda de terras. Essas informações são essenciais para que as empresas possam verificar a titularidade das terras de seus fornecedores, mas também para que os órgãos governamentais evitem alocações sobrepostas, como concessões em áreas protegidas.
  • sociedade civil pode apoiar objetivos consistentes de rastreabilidade e transparência nas ações políticas – por exemplo, definindo o que constitui “evidência confiável” na divulgação de informações. As organizações da sociedade civil podem contribuir com conhecimento técnico e garantias adequadas para que questões de privacidade de dados sejam administradas de uma forma que incentive o compartilhamento de informações. Além disso, podem ajudar a reunir os atores envolvidos para promover um melhor alinhamento.

    A iniciativa Accountability Framework (AFi, na sigla em inglês) é resultado da colaboração de dezenas de ONGs para ajudar empresas com seus compromissos em relação às cadeias produtivas dos setores de agricultura e silvicultura. O apoio começa pelo estabelecimento de boas práticas e definições padronizadas, como o que “livre de desmatamento” implica na prática. A iniciativa oferece referências internacionais que todas as empresas podem usar, independentemente de sua localização geográfica ou da commodity que produzem.
     
  • setor privado pode assegurar que os custos para promover transparência e rastreabilidade sejam divididos de forma equilibrada, por meio de medidas específicas para os desafios de pequenos produtores. Fazer isso é importante porque muitos desses produtores podem não ter acesso às tecnologias, capacidade técnica e recursos necessários para atender às normas de monitoramento e divulgação de informações. As empresas podem, por exemplo, desenvolver sistemas de coleta de dados que levem os interesses dos pequenos produtores em consideração, oferecendo-lhes acesso a seus próprios dados de produção, rendimentos e preços de venda.

    A colaboração nas etapas pré-competitivas também é importante, especialmente quando diferentes empresas adquirem commodities das mesmas áreas. Por exemplo, para ajudar a acabar com o desmatamento decorrente da produção de cacau na África Ocidental, o WRI uniu forças com a World Cocoa Foundation e 19 grandes empresas produtoras de cacau e chocolate para criar duas novas fontes de dados. Os atores do setor do cacau podem utilizar essas ferramentas para identificar áreas prioritárias em Gana e na Costa do Marfim e coordenar ações para prevenir o desmatamento antes que ele aconteça. Essa foi uma colaboração sem precedentes no setor, por meio da qual as empresas concordaram em compartilhar dados sensíveis sobre a produção de cacau de uma forma que respeitasse as informações das empresas proprietárias e protegesse a privacidade dos agricultores.


Em última análise, eliminar o desmatamento nas cadeias produtivas de commodities é um desafio complexo e exige abordagens multifacetadas e o envolvimento de diversos atores ao longo da cadeia. Promover transparência e rastreabilidade não é uma solução milagrosa. Mas, com as condições adequadas e uma abordagem prática, esse pode ser um passo crucial para remover barreiras e acabar com o desmatamento.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights