Pelos próximos 20 anos, um documento irá guiar os esforços desenvolvidos por nações, líderes urbanos, financiadores internacionais, programas das Nações Unidas e sociedade civil em torno das transformações urbanas. A Nova Agenda Urbana (NAU), a declaração que resultará da Habitat III, a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, em curso nesta semana, em Quito, foi elaborada com o objetivo de repensar a maneira como as cidades e aglomerados humanos são planejados, desenhados, financiados, desenvolvidos, governados e administrados.

Nos últimos quatro meses, especialistas do mundo todo enviaram contribuições sobre dez diferentes políticas urbanas. Esse trabalho, somado a encontros e reuniões preparatórias realizadas desde 2014, foi convertido no documento de 24 páginas, acordado por 193 países e que deve ser adotado formalmente após a Habitat III.

As repercussões da NAU serão sentidas ao longo das próximas décadas em desdobramentos ainda imensuráveis. Até 2050, estima-se que a população urbana mundial vá quase dobrar de tamanho, o que torna a urbanização um dos aspectos mais transformadores do século 21. Como resultado, as cidades tornam-se pontos focais de grandes desafios que terão de ser superados em termos de habitação, infraestrutura, serviços básicos, alimentação, saúde, educação, emprego, segurança, recursos naturais, entre outros.

A Nova Agenda Urbana incentiva todos os níveis de governo, assim como a sociedade civil, a tomarem parte dos compromissos pelo desenvolvimento urbano sustentável. O documento trabalha pela promoção de um planejamento urbano e territorial que garanta o uso sustentável do solo e dos recursos naturais ao pedir por cidades compactas, policêntricas, com densidade e conectividade apropriadas e controle da dispersão urbana. Essas características têm o poder de reduzir os desafios e problemas da mobilidade urbana, por exemplo. O texto instiga a integração dos planos de mobilidade no planejamento urbano das cidades e apoia a priorização do transporte ativo sobre o transporte motorizado, e ao Desenvolvimento Orientado pelo Transporte Sustentável (DOTS), que minimiza os deslocamentos – em particular dos mais pobres – e possibilita custos mais acessíveis. O planejamento da mobilidade urbana sustentável deve promover segurança e acessibilidade responsivo a questões de gênero e de idade, promovendo sistemas eficientes para passageiros e mercadorias que ligam pessoas, lugares e oportunidades econômicas.

Espaços públicos são uma oportunidade para aumentar a inclusão social (Foto: jdegenhardt/Flickr)

O desenvolvimento de espaços públicos e áreas verdes, assim como a promoção da caminhabilidade e do uso da bicicleta, com a melhoria das calçadas e ciclovias, é uma das medidas apontadas pelo documento como oportunidades também de estabelecer interação e inclusão social, saúde e bem-estar humano, intercâmbio econômico, expressão cultural e diálogo entre uma grande diversidade de pessoas, o que contribui ainda para a construção da paz nas comunidades.

O impacto ambiental gerado pelo homem é reconhecido pela NAU como uma ameaça sem precedentes e, portanto, deve ser combatido. "Padrões de consumo e produção insustentáveis, perda da biodiversidade, pressões sobre os ecossistemas, poluição, desastres naturais e provocados pelo homem, mudanças climáticas e seus riscos minam os esforços para acabar com a pobreza em todas as suas formas e dimensões", ressalta o documento. O texto incentiva a adoção o enfoque das cidades inteligentes, que fazem pleno uso das novas tecnologias para diminuir o impacto sobre o meio ambiente, impulsionar o crescimento econômico sustentável e aprimorar a resiliência nas áreas urbanas.

A pobreza e a desigualdade nas cidades são enfatizadas no texto como as responsáveis por afetar o crescimento de países em desenvolvimento e desenvolvidos. "Reafirmamos o nosso compromisso de que ninguém será deixado para trás, e nos comprometemos a promover oportunidades e benefícios igualmente compartilhados, e possibilitar que todos os habitantes, vivendo em assentamentos formais ou informais, tenham uma vida decente, digna e gratificante e atinjam seu pleno potencial humano", diz o documento.

A NAU prevê ainda que as cidades alcancem a igualdade de gênero, garantindo a participação plena e efetiva das mulheres, a igualdade de direitos em todos os níveis, a prevenção e eliminação de todas as formas de descriminação e violência em espaços públicos e privados. A valorização da diversidade nas cidades é um meio apontado pela NAU para alcançar a equidade e reforçar a coesão social. "Também nos comprometemos a tomar medidas para assegurar que as nossas instituições locais promovam o pluralismo e a coexistência pacífica nas sociedades cada vez mais heterogêneas e multiculturais."

A nova estratégia para os próximos anos deve ser vista como um importante guia para a implementação de outros pactos globais. O Acordo de Paris, negociado durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015 (COP 21), e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, são talvez os dois principais programas beneficiados pelo documento. Eventos em Quito irão tratar dessas inter-relações e também irão colocar em pauta assuntos políticos e financeiros importantes para ambos os processos. A NAU destaca em seu texto a contribuição que faz para a implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e também para a conquista dos ODS, "incluindo o Objetivo 11 sobre o desenvolvimento de cidades e assentamentos urbanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis".

O uso e a implementação da agenda

Pedestres em Quito (Foto: martina/Flickr)

Diferentemente do Acordo de Paris, a Nova Agenda Urbana não é um acordo legalmente vinculante, ela apenas oferece orientações para os atores envolvidos no desenvolvimento urbano construírem seus planos de ação. O texto reconhece que será necessária uma estruturação política em nível nacional, subnacional e local, que integre o planejamento participativo e gestão do ordenamento do território urbano, e meios eficazes de implementação.

"Convidamos organizações e entidades internacionais e regionais, incluindo as do sistema das Nações Unidas e os acordos ambientais multilaterais, parceiros de desenvolvimento, instituições financeiras internacionais e multilaterais, bancos regionais de desenvolvimento, o setor privado e outras partes interessadas, a melhorar a coordenação das suas estratégias e programas de desenvolvimento urbano e rural para a aplicação de uma abordagem complementar a urbanização sustentável, integrando a implementação da Nova Agenda Urbana."

O acordo anterior a Nova Agenda Urbana é a Habitat Agenda, adotada em 1996 na Habitat II, em Istambul. Os membros se comprometeram a implementar a agenda em níveis nacional, estadual, local e internacional através de planos de ação e outros programas nacionais. O processo permitiu aos países a adaptação das recomendações da Habitat Agenda às suas necessidades e circunstâncias específicas. No entanto, segundo argumenta o Relatório de Progresso da Habitat II, elaborado em 2014, a falta de esforços políticos e a demasiada confiança nas soluções advindas do setor privado foram os maiores obstáculos à implementação do documento. Apesar do progresso ocorrido após Istambul, conforme a análise, desde 1996 pouco foi feito em termos de cooperação internacional para o desenvolvimento de habitação.

O desafio dessa nova ferramenta é justamente se fazer presente nos planos das cidades. Para isso, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat) lançou o Quito Implementation Plan (QIP), um portal online para os diversos tipos de stakeholders - incluindo o setor privado, ONGs e organizações de base - apresentarem publicamente seus compromissos e iniciativas de implementação em um lugar centralizado. A ideia é chamar atenção às diferentes atividades e oportunidades em andamento e suscitar colaborações.

Vancouver, Istambul e Quito

A Habitat foi lançada pelas Nações Unidas em 1976, quando os governos começaram a perceber as graves consequências geradas na rápida urbanização. A primeira conferência foi realizada em Vancouver, onde os governos foram incentivados a adotarem uma abordagem territorial às suas estratégias nacionais de desenvolvimento, e para envolver organizações da sociedade civil com foco em questões urbanas. A primeira agência da ONU na África também foi estabelecida. O Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, em Nairóbi, foi a base da criação do UN-Habitat.

A Habitat II, em Istambul, 20 anos depois, foi ainda mais importante, já que, após reunir representantes da sociedade civil e de grupos de trabalho das Nações Unidas, lançou o Habitat Agenda. O evento passou a destacar a importância do setor privado no avanço das ações em torno do desenvolvimento urbano, refletindo o tom da economia mundial, que no momento era impulsionada pela globalização e pela forte confiança no mercado livre.

Nesta semana, em Quito, centenas de eventos paralelos serão realizados para tratar de novas iniciativas, compromissos e pesquisas e para debater soluções, mecanismos de financiamento e novas estruturas de governança urbana. A visão coletiva de especialistas traduzida em palavras na Nova Agenda Urbana deve inspirar os líderes urbanos a tomar atitudes para o desenvolvimento de cidades do futuro, sustentáveis, equitativas e prósperas.

O WRI está engajado na Habitat III e também contribuiu no processo de elaboração da Nova Agenda Urbana, ao responder as três rodadas de revisões ao qual foi submetido o documento. Ani Dasgupta, Diretor Global do WRI Ross Center for Sustainable Cities, explica a importância do encontro na capital equatoriana: "A Habitat III é uma excelente oportunidade para todos nós nos reunirmos e acordarmos em uma visão e um caminho para as cidades pelo mundo. Na minha visão, uma Habitat III de sucesso precisa incluir: uma agenda de implementação e um processo de monitoramento muito claros, comprometimentos nacionais com políticas de desenvolvimento que deem poder às cidades e planos de financiamento que sustentem as soluções que surgirão em Quito. Se essas coisas acontecerem, todos teremos orgulho do processo da Habitat III e dos resultados de Quito”.

A NAU e o Brasil

O Brasil está representado oficialmente na Habitat III através de uma delegação de técnicos do Ministério das Cidades, apoiada pelo Itamaraty. A missão é chefiada pela Secretaria Nacional de Habitação, Henriqueta Arantes. O país vem desde 2014 em um processo preparativo para a elaboração do Relatório Nacional para a conferência. Para o Chefe da Divisão de Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores, Carlos Fernando Gallinal Cuenca, os interesses brasileiros foram contemplados de forma satisfatória no texto da Nova Agenda Urbana. "No plano internacional eu diria que o Brasil foi um dos países mais engajados em todo o processo preparatório", afirma ele. "Tivemos um papel muito importante para garantir um processo de preparação dos governos nacionais, para que realmente houvesse uma negociação, um processo intergovernamental. Isso é o que dá legitimidade aos resultados e faz com que os países se apropriem dos resultados."

Desde a Habitat II, o reconhecimento internacional do direito à moradia influenciou marcos importantes no Brasil, como da aprovação do Estatuto da Cidade (2001), a criação do Ministério das Cidades (2003) e do Conselho das Cidades (2004). "No Brasil o debate sobre a Nova Agenda Urbana é confortável. O país tem uma série de mecanismos considerados modernos em termos de políticas urbanas nacionais, muitos municípios têm uma legislação moderna em termos de desenvolvimento urbano, o país tem políticas urbanas que são aplaudidas. Sem dúvidas temos muito a fazer, mas é um debate até confortável para nós", explica Cuenca.

Segundo o relatório nacional, nos últimos vinte anos, o Brasil construiu um quadro legal e normativo robusto para implementar uma efetiva reforma urbana. No entanto, ainda existe uma série de empecilhos ao desenvolvimento nacional. "O modelo de urbanização baseado na exclusão social e na segregação socioespacial, que cria espaços urbanos fragmentados e até mesmo partidos, é a mais candente", diz o texto.

Na concepção de Luis Antonio Lindau. diretor do programa de Cidades do WRI Brasil, “as cidades enfrentarão enormes desafios nessa metamorfose que se impõe rumo a um ambiente urbano mais inclusivo, livre de pobreza, próspero, sustentável e resiliente que garanta oportunidades para todos". "Será necessário contar com estruturas sólidas de governança e financiamento, contemplando mecanismos permanentes de cooperação e consulta. Isso passa por engajar e alinhar múltiplos atores com interesses diversos – e muitas vezes até conflitantes – além de reunir as nossas diferentes esferas de governo. O programa de Cidades do WRI Brasil tem, como um de seus objetivos, apoiar as cidades brasileiras nesse esforço”, destaca Lindau.