O Brasil registra atualmente cerca de 38 mil mortes a cada ano em decorrência de acidentes de trânsito e mais da metade das vítimas são pedestres, ciclistas e motociclistas. Esse número alto e é um resultado claro da falta de segurança viária nas cidades. Duas grandes capitais brasileiras, São Paulo e Fortaleza, já estão reduzindo seus índices de fatalidades no trânsito através de medidas como velocidades mais baixas nas vias e readequação de infraestruturas viárias. Para além disso, elas podem ser as primeiras cidades brasileiras a adotar a Visão Zero e os Sistemas Seguros - abordagem e planejamento caracterizados por metas ambiciosas de redução de acidentes e que atribuem qualquer falha ao sistema de trânsito, não ao erro humano.

Ao redor do mundo, acidentes de trânsito ocasionam a morte de 1,25 milhões de pessoas por ano. Isso é resultado de um desenvolvimento urbano mal planejado, da tradicional priorização dos veículos motorizados, de falhas de infraestrutura de vias e calçadas, que colocam pedestres e ciclistas em risco, de leis e fiscalização inadequadas, entre outros fatores. A maior parte das mortes ocorre em países de renda média e baixa. Para mudar essa realidade, é possível inspirar-se em ações de segurança viária de países como Suécia, que atualmente registra três mortes a cada 100 mil habitantes por ano em acidentes de trânsito. Nos anos 1990, Suécia e Holanda, ambos referências mundiais no cuidado com as pessoas no sistema viário, foram os primeiros a adotarem abordagens de Sistemas Seguros e Visão Zero.

Essa é a proposta que começa a ser desenvolvida nas cidades de São Paulo e Fortaleza. Na última semana, ambas capitais anunciaram a futura implementação dessa abordagem através da elaboração de planos de segurança viária. Ambas fazem parte de um grupo de dez cidades do mundo selecionadas em 2015 pela Bloomberg Philanthropies para fazer parte de sua Iniciativa para a Segurança Global no Trânsito. Desde lá, as prefeituras vêm trabalhando na implementação de uma série de medidas para qualificar e priorizar o transporte ativo e intensificar a segurança viária.

A queda no número de acidentes é resultado dessas medidas. Segundo dados lançados recentemente por Fortaleza, o ano de 2017 registrou a terceira queda consecutiva no número de vítimas fatais no trânsito. Houve uma redução de 9% de ocorrências em relação a 2016, somando 256 mortes. A taxa de mortalidade também vem caindo, e chegou a 9,7 mortes por 100 mil habitantes em 2017. São Paulo também reduziu em 6,8% o número de mortes registradas em 2017 na comparação com o ano anterior. De acordo com dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), foram 796 mortes, o menor número já registrado na cidade desde 1979, primeiro levantamento realizado pela companhia.

Sergio Avelleda, secretário de Mobilidade e Transportes de São Paulo, reforçou que a principal meta da sua secretaria é diminuir as mortes no trânsito. “São Paulo tem hoje uma taxa de 6,56 mortos a cada 100 mil habitantes. Pela primeira vez na história da cidade nós baixamos da faixa das 7 mortes a cada 100 mil habitantes. É um índice baixo se comparado com a taxa de 23,4 mortes estimada no Brasil. Porém, não há número bom quando falamos de pessoas que morreram por uma causa que poderia ser evitada. E todas as mortes no trânsito podem ser evitadas. Não há fatalidade, há falhas em elos de uma corrente que se rompem e geram a morte”, ressaltou. “Os países que saíram desse patamar de 6 ou 7 mortes a cada 100 mil habitantes para 2, como a Espanha, por exemplo, adotaram políticas integradas, envolveram toda a sociedade civil, com ações contínuas em todos os cantos da engenharia de tráfego, educação, orientação e fiscalização. E é isso que vamos fazer.”

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Em 2017, Fortaleza registrou a terceira queda consecutiva no número de vítimas fatais do trânsito (Foto: Rodrigo Capote/WRI Brasil​)

“Ter um plano de Segurança Viária estabelecido e formalizado permite dar estabilidade e continuidade às políticas de segurança viária. Deixar isso como um legado para a cidade é muito importante. Temos feito progressos muito animadores em Fortaleza nos últimos três anos com a parceria da Iniciativa Bloomberg. Agora é formalizar um plano de segurança viária como um documento mestre e orientativo dessas políticas para o futuro da cidade”, explica Luis Alberto Saboia, secretário-executivo da Conservação e Serviços Públicos de Fortaleza. Segundo ele, a capital cearense pretende, este ano, trabalhar com as diversas secretarias da prefeitura e com entidades da sociedade civil na construção do plano para que, em 2019, possa ocorrer o lançamento do documento como forma de lei ou de algum outro instrumento de formalização.

“O plano permite dar um passo além no sentido de assumir metas objetivas de redução e manutenção da redução no número de acidentes e assumir premissas de como a cidade, sociedade e poder público veem o problema. O plano é um passo muito forte no sentido de preparar essa e as próximas gerações para entender que morte no trânsito não é aceitável, não é uma fatalidade, é algo que pode ser evitado com um conjunto de ações”, completa.

Um novo olhar para a segurança viária

Criado na Suécia em 1997, o programa Visão Zero parte da premissa de que erros humanos são inevitáveis, mas fatalidades e ferimentos graves no trânsito não são. Acidentes com mortes não são custos inevitáveis do crescimento das cidades ou da mobilidade, eles não ocorrem isoladamente. Na prática, o programa implanta a abordagem dos Sistemas Seguros, que se baseia em um entendimento de que os seres humanos cometem erros e são vulneráveis a lesões em caso de um acidente. Com base nestes princípios, o sistema viário deve ser projetado de modo que o erro humano não leve a um desfecho grave ou fatal.

Um plano sustentado pelas premissas dos Sistemas Seguros promove uma mudança de paradigma, em que o foco não é mais direcionado ao comportamento do usuário da via, mas a um método onde a ênfase passa a ser a prevenção das mortes no trânsito através de uma abordagem sistêmica de planejamento urbano e gestão da mobilidade.

Sistemas Seguros envolvem estratégias integradas que promovem a coordenação de várias instituições ligadas ao planejamento urbano e à gestão da mobilidade, incluindo o trabalho de engenheiros de tráfego, profissionais de fiscalização, designers de veículos, especialistas de saúde, educadores, jornalistas e cientistas sociais. Isso porque a dinâmica das ruas ocorre a partir de uma relação entre variados componentes como infraestrutura, leis, regulamentações, uso do solo, usuários das vias, entre outros. Em outras palavras, significa compartilhar a responsabilidade, com a premissa de que os governos precisam adotar medidas para proteger as pessoas no trânsito. A sociedade como um todo também participa do processo.

A recém-lançada publicação do WRI, Sustentável e Seguro: Visão e Diretrizes para Zerar as Mortes no Trânsito, apresenta oito áreas de ação a serem levadas em conta ao criar um sistema viário seguro:

  • Planejamento do uso do solo
  • Desenho de ruas seguras
  • Melhoria das opções de mobilidade
  • Gestão da velocidade
  • Fiscalização, leis e regulamentações
  • Educação e capacitação
  • Desenho e tecnologia de veículos
  • Atendimento e cuidado de emergência pós-acidente

Para trabalhar os novos conceitos com os corpos técnicos das prefeituras de São Paulo e Fortaleza, o WRI Brasil, em parceria com a Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito (BIGRS), trouxe duas especialistas em segurança viária dos Estados Unidos e Dinamarca: Claudia Adriazola, diretora global de Segurança Viária do WRI, e Anne Eriksson, da Direção Rodoviária Dinamarquesa. As especialistas foram acompanhadas por Sofia Salek de Braun, analista de negócios e defensora da segurança viária do Grupo PTV, na Alemanha. As três puderam conhecer os cronogramas iniciais do planejamento das cidades para a construção de seus planos e trouxeram experiências e boas práticas do exterior.

Claudia Adriazola, diretora global de Segurança Viária do WRI

"As cidades que abraçam o Visão Zero são mais sustentáveis, mais humanas e mais agradáveis para se viver, são cidades mais prósperas e que protegem especialmente os pedestres e ciclistas, que estão entre os que mais morrem e ficam gravemente feridos em acidentes", afirma Claudia.

Em 2015, um acidente de carro tirou a vida do filho e dos sogros de Sofia. Desde o ocorrido, ela decidiu trabalhar para que ninguém mais perca a vida no trânsito. “O que aconteceu com a minha família pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. Todos sabemos que todos os dias morrem pessoas, mas quase sempre pensamos que é algo que acontece apenas com os outros, com pessoas que não conhecemos. Porém, não aconteceu com os outros, aconteceu comigo. E a partir daquilo, minha vida mudou completamente. A segurança viária é uma responsabilidade compartilhada, é minha e é de vocês. Todos temos um papel a desempenhar sobretudo por um simples valor ético”, destaca Sofia.

Já Anne Eriksson participou da elaboração do plano de segurança viária de Copenhague e hoje trabalha na Danish Road Directorate, agência do Ministério dos Transportes dinamarquês. “Um Plano de Segurança Viária é uma maneira de captar todo o trabalho que já está sendo feito nas cidades e apresentar como um documento. É importantíssimo ter um plano acordado em nível político, fruto de discussões sobre ações importantes”, afirma.